Gênesis da escuridão - Conto
Gênesis da escuridão - Conto
O Dia e a noite são antíteses complementares que regem a humanidade desde os primórdios, por isso assentamos a nossa vida anfêmera para convir com a milenar dança fraternal de Apolo e Ártemis de tal modo que, quando ambos os irmãos são raptados a nossa civilização declina, porque o sol e a lua são muito mais do que candelabros divinos. Restringir a noite perpétua somente a obscuridade é um equívoco fatal, pois assim que se descortina o reposteiro para o novo mundo, remodelado pela gênesis demoníaca, desvenda-se todos os males e monstros subsequentes.
Presentemente,
tudo rescende a putrefação e fumaça, visto que todos ambicionam ter o próprio
astro e a fogueira é uma imitação grotesca, mas conveniente, porquanto também os
afugenta, uma vez que parecem ter uma aversão a tudo que refulge algo
inteligível ao recordar que são filhos de Satanás. Além disso, o fogo é crucial
para a retenção de uma noção temporal, dado que agora os camponeses comensuram
a duração diurnal contabilizando o tempo decorrido para a lenha se converter em
braseiro. Contudo, em contrapartida, devastamos as imediações florestais mais
rápido do que conseguimos esmar, por essa razão, eu não me assombraria se
descobríssemos, após a luz triunfar sobre as trevas, que a exuberante
Transilvânia é apenas um imenso descampado montanhoso. Posto que se nós nos
iludimos com um tosco sol espúrio o mesmo não se aplica a sábia natureza que
está sendo ingerida pela escuridão, bem como nós por eles, aliás, quem são
eles? Francamente, eles são um mistério como o próprio breu perene, já que a
esfíngica realidade nos apresenta enigmas que somos inaptos para resolver. Não
obstante, há um consenso de que eles se ergueram do inferno até a sombria
superfície através das cavernas onde a claridade jamais se aventurou e nem
sequer nós, conquanto sejamos culturalmente hábeis mineradores.
Particularmente, julgo irônico que o mesmo tesouro subterrâneo que nos
presenteou com pedras preciosas e, por conseguinte, prosperidade hoje propaga a
vindoura causa da nossa extinção.
Para
mim, uma ignara rurícola, já é indubitável que seremos dizimados nesse tétrico
apocalipse, seja pela monstruosa fome ou pelas criaturas infernais, como pude
constatar em minha própria plantação que pereceu desprovida da vivaz
luminosidade e o meu marido que é trucidado pelos sanguinários demônios, por
fim, tanto a vegetação quanto o meu estimado amor estão exangues em nossa
pequena fazenda que sou coagida a abandonar, porque não há comida e
concomitantemente eu me tornei comida.
De
fato, creio que esse seja o início do fim da raça humana, ao passo que apenas o
princípio do infernal reinado dos sanguinolentos predadores, visto que a morte
de uma sociedade pode simbolizar o renascer de outra o que prontamente se
revela um axioma conforme a notívaga civilização prorrompe das nossas
caliginosas cinzas. Dessa maneira, nos forçando a se subordinar como presas
acuadas de vorazes bestas que ainda ignorávamos a existência.
A
Bíblia assegura que somos a mais perfeita réplica de Deus e já estamos
devidamente cônscios que eles temem tudo que faz referência a Santa
Providência, portanto qual a razão para a prole do Diabo que se prolifera na
tenebrosa escuridão também priorizar a fisionomia humana? Seriam eles traidores
da própria espécie ou se metamorfoseiam segundo a alimentação vigente? Como
alguns alquimistas alegam, após comprovada a semelhança entre as criaturas
diabólicas e os morcegos que seriam uma variação que se nutre de uma miríade de
aves.
Algumas
variantes aladas esporadicamente atravessam a macabra abóbada celeste esboçando
horripilantes silhuetas, quando se achegam a alguma vela cuja cera minguante
ainda resiste. No entanto, é insólito que algum satânico parente terrestre
deambulando cercania realmente se disponha a me averiguar, pois acho que sou um
antepasto insosso para quem está prestes a saborear um banquete na vila
adjacente. Mesmo assim, circundo toda a minha cabana com cruzes, embora admita
que confeccionei essa muralha divinal mais a fim de tranquilizar a própria
consciência do que por supor que ela teria algum propósito prático. Mas,
eventualmente teve e eu não fazia ideia de como proceder.
A
despeito do amedrontador incidente ainda ser vívido em minha memória, tudo que
lhe precede olvidei, talvez devido a irrelevância. Todavia, lembro com nitidez,
quando eles se aproximaram, vestidos de forma impecável, as suas gargalhadas
ressoavam na escuridão e os dentes afiados como lâminas de marfim se realçavam contra
as suas feições humanas. Enfim, estava diante da nova nobreza elegida não por
Deus, mas pelo Diabo que, tudo leva a crer, lhes concede eloquência, pois
acaloradamente debatem. O primeiro, tacanho ancião, está confiante que a
madeira está apodrecida e prestes a ceder sob o menor toque. Ao passo que o outro,
mais ponderado, argumenta que sequer valia a pena o empenho para testar, visto
que cá deveria ser o lar de esfomeados, enquanto sempre há fartura em um
agrupamento citadino. Nesse ínterim, estou paralisada pelo terror, porque os
meus únicos recursos para sobrevida são uma estaca torta que mais parece um
graveto e um frasco empoeirado de água benta que nem sei se ainda é sagrada.
O
colóquio entre eles preenchia o ar tenso com sibilos ininteligíveis que
determinarão o meu porvir se houver algum. Não obstante, escondida na cabana, estou
apta apenas para ensimesmar acerca da fragilidade dos meus meios de defesa. A
estaca trêmula nas minhas mãos parecia inútil e a água benta uma atroz
incerteza. Acho que ao me aperceber disso, permito levianamente que um suspiro
escapula dos meus lábios entreabertos.
—
Escutou algo? — indaga intrigado o pomposo senhor.
—
Não estou certo — empertigando-se
com desinteresse, logo complementa fitando o horizonte. — Talvez, seja apenas um roedor ordinário.
Segue-se
um silêncio torturante no qual eu recorro a minha perseverante fé rezando para
desistirem, enquanto os meus desordenados pensamentos reevocam o meu falecido
marido. Porém, logo ouço a mesma entonação desdenhosa arrematar:
— Deixemos essa família para os
ratos, porque eu não jornadeei até o povoado para caçar como uma fera vulgar.
Venha, quiçá ainda chegamos para a ceia.
Antes
mesmo de normalizar a respiração entrecortada por um pranto copioso, parto em
peregrinação até a morada desabitada que outrora foi da minha mãe. Posto que
estava convicta de que haveria segurança e alimento na pequena aldeia costeira
que presumi sobreviver devido a arraigada tradição pesqueira que o papai tanto
parolava a respeito. Entretanto, se pequei agora por ingenuidade, logo seria
por presunção, porque erroneamente pressupus que, enfim havia vivenciado o
inferno e me relacionado com os seus carniceiros moradores. Todavia, eles são
detentores de uma sucessão de nuances, assim como nós. Afinal, não há nada de
similar entre um rei e um miserável o que outrossim ocorre com eles.
Logicamente,
a aldeia já não era a mesma da minha infância e eu não estava preparada para
contemplar a discrepância e sentir o eco do riso infantil que ressoa em minha
mente, uma sinfonia perdida que se mistura aos perniciosos ruídos do presente.
É tão excruciante caminhar em meu paraíso pueril, depois dele ser redecorado
para remeter ao inferno. Cada esquina, cada árvore retorcida, evoca memórias
entrelaçadas com o doce perfume da infância, um aroma que se recusa a ser
dissipado pela cruel realidade que me cerca. Uma esperança em vão, estou
ciente.
Os
escombros evidenciam que estamos malogrando a guerra que se estende pela
lúgubre noite cuja preferência está explícita. Mesmo assim, persigo com o
olhar, entre vultos e ruínas, a centelha da lembrança que continua a queimar,
resistindo à voracidade das sanguinárias criaturas que me fizeram uma estranha
em minha própria terra natal.
A
névoa se adensa tingindo o ar de um cinza fantasmagórico. As ruas, antes vibrantes
com o burburinho da vida cotidiana, agora estavam tensas impregnadas de um medo
palpável. A cada passo, meus sentidos eram assaltados por uma cacofonia de sons
e imagens que, apesar de tudo, ainda me pasma. Tendo em vista, que para onde
quer que eu examine já vejo cruzes de madeira adornadas com símbolos religiosos
que brotam do solo como sentinelas vigilantes. Além de homens lívidos e
depauperados que se arrastam como espectros ao circular as sórdidas vielas murmurando
orações e salmos em um ritmo frenético. Sinceramente, duvidei que estivessem
viventes ou sequer existissem até que ecoa um brado vigoroso de um menino
esquálido que parece drenar toda a sua vitalidade para alertar:
—
Uma criatura da noite! Uma criatura da noite! Uma criatura da noite!
Toda
a apavorada atenção conflui para mim que me reduzo a sorrir desengonçada
cumprimentando-os o mais amistosamente que consigo com uma estaca aguçada
roçagando em minhas costas. Em seguida, sou liberada, conquanto esteja patente
que ainda sou considerada uma anomalia.
Cautelosamente,
retorno ao meu refúgio infantil, onde sombras dançavam uma música torpe nas
paredes musgosas que já abrigaram memórias calorosas. No entanto, todo o
ambiente está irreconhecível, porquanto móveis antes suntuosos, agora jazem em
um amontoado grotesco de madeira estilhaçada, ou seja, são tentativas
fracassadas de compor um arsenal de estacas que atualmente são sustento para
uma comunidade de cupins que as ornamenta para combinar com a decadência empoeirada
do resto, aliás, por ventura, estou inábil para dimensionar com precisão a
deterioração da residência graças ao absoluto breu em que penetro para me
aventurar no abismo de incertezas que nomeio de lar.
Em
meio à negrura cega da escuridão, minhas mãos exploram o vazio, uma busca tateante
na penumbra do desconhecido. Subitamente, meus dedos encontram algo que desafia
a explicação sensorial: uma consistência molhada e pegajosa cujo núcleo, contrariando
a expectativa, revela-se inesperadamente rígido. A textura, entre o fluido e o
sólido, era um completo enigma. Corajosamente, puxei uma porção que se
assemelhava a um tecido, um véu de obscuridade que me separa da verdade oculta.
No entanto, o que se desvelou não era um mero pano, mas sim uma carnificina
vívida.
O
aroma que emergiu dessa descoberta macabra, uma horrenda amálgama de decomposição
e morbidez, envolveu-me como uma mortalha nauseante. Era a essência do profano,
um olor que sussurrava degradação e perversidade. Tal era a pungência que minha
própria fisiologia repudiava, um apelo visceral à revolta contido nos ossos
expostos daquela sinistra descoberta que somente reconheço, porque exibe os
mesmíssimos dentes afiados como lâminas de marfim. Sendo assim, recuei ainda
tangenciando a fronteira do desconhecido. Entretanto, é nesse exato átimo que a
voz do monstro de sangue, uma melodia gutural carregada de sadismo, rasgou o
silêncio tétrico em uma provocação que me soou como presságio:
—
Tu já me tocaste, agora permita-me que te prove também.
A
sugestão se insinuava como um truculento convite que me aligeiro para negar
correndo antes mesmo de planear para onde. Assim, deparo-me com o ermo rio onde
não hesito em nadar nas frígidas águas que me acolhem com a maior hospitalidade
que presencio desde que cheguei. Contudo, as trevas aquáticas também carregam o
toque daquela criatura insidiosa que vocifera irada:
—
A água não é o teu refúgio, tola humana, mas será o teu túmulo.
Empenho-me
com bravura para contrariar o vaticínio maldito do meu algoz, porém conforme
nado os meus membros perdem paulatinamente a sensibilidade, visto que o meu
frágil corpo mundano não possui a determinação da minha alma religiosa.
Consequentemente, a minha consciência se desvanece e apenas oro para já acordar
no Éden que estou convencida que mereço e espero que Deus idem.
O
despertar foi suave, sentia-me nas nuvens, contudo estava, na realidade,
flutuando entre os alhos que oscilam segundo a ordem soberana da correnteza.
Após, finalmente sobrepujar a inércia e soerguer a cabeça longinquamente
vislumbro a luz tênue de uma paróquia que me afigura quase como um milagre
idílico. Portanto, envido-me para alcançar à esperança que se materializa na
margem e, quando a primeira mão bondosa da paróquia me recolhe das profundezas
é como se eu reencontrasse o caminho, a verdade e a vida, por isso faço uma
sutil mesura a aprazível senhora que me acomodando em seu xale, logo me
recepciona meiga:
—
Calma, menina. Nada mais tema, porque onde Deus se reúne o Diabo nunca visita.
Estou consciente que uma vitória não ganha a guerra, porém hoje estou tentada a pensar que sim.
Parabéns, tocante, mágico, tão sobrenatural e ao mesmo tempo tão verossímil.
ResponderExcluirObrigado, gosto de me aventurar em gêneros divergentes da vasta literatura.
ExcluirImpressionante como nos enternecemos com uma história tão surreal. Sinto a angústia da protagonista!
ResponderExcluirEspero que também tenha se enternecido com a sua esperança!
Excluir👏👏👏👏
ResponderExcluir❤️❤️❤️
ExcluirUm suspense envolvente que devoramos até conhecer o final. Frenético...
ResponderExcluirEstou muito feliz ainda mais que eu não acredito que exista uma leitura mais satisfatória do que aquela que devoramos com avidez!
ExcluirParabéns, criou todo um novo mundo para nós!!!
ResponderExcluir❤️
ExcluirAdorei, simplesmente diferente de tudo que já li até então. Tu és muito versátil escritora
ResponderExcluirObrigado, eu adoro um desafio literário! Pretendo me arriscar cada vez mais, afinal proezas não derivam de certezas...
ExcluirConfesso que não sou afeita a tal gênero, mas achei muito curioso o teu conto
ResponderExcluir❤️❤️❤️
ExcluirBelo conto, parabéns!!!
ResponderExcluir❤️
ExcluirUma protagonista cativante que nos guia por um estranho mundo dispótico!
ResponderExcluirPessoalmente, acho a atmosfera medieval bastante intimidadora
ExcluirParabéns, escritora
ResponderExcluir❤️
ExcluirMaravilhoso, um conto de um futuro horrendo em que a esperança desabrocha em meio a terra mais estéril possível!!!
ResponderExcluir❤️
ExcluirA esperança resiste sempre!!! Uma mensagem poderosa para a atualidade...
ResponderExcluirEssa mensagem é atemporal e sempre pertinente
ExcluirQue título curioso! Combina perfeitamente com o conteúdo mágico do texto
ResponderExcluir❤️
ExcluirImpressionante, parabéns escritora Victoria!!!
ResponderExcluir❤️
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