A face delicada de Paris conhecerá o corpo bruto que a sustenta - Conto

A face delicada de Paris conhecerá o corpo bruto que a sustenta - Conto

        Quando compreendemos a vida como uma harmônica dança em que todos se sujeitam aos personagens previamente estabelecidos, logo deduzimos que o coreógrafo de tudo seria Deus ao qual todos tememos e respeitamos, entretanto uma nova consciência desabrocha no âmago da opressora França fruto das sementes que os próprios algozes arremessam sobre a terra infértil que já não oferta pão e consequentemente sustento, não obstante, enceta a florescer ideias perniciosas para alguns, enquanto libertadoras para outros.

            Mesmo que não se aprofunde sobre tal ambiguidade algo é inegável e patente para ambos os lados, ou seja, aristocracia e plebe. Todos se apercebem de que o palco onde já se distingue as marcas dos passos repetidos incessantemente por toda a longa noite dos mil anos já não é o detentor da única dança da vida francesa, além disso o teatro em que tantas gerações se delongaram dançando e dançando com a imperiosa música nobre presentemente desmorona por absoluto preservando somente as paredes, então corroborando para a fajuta narrativa de que a França permanece intocável sobre o voraz avanço bárbaro da Revolução Francesa, contudo tudo se resume a uma quimérica miragem algo que não ultraja a nobreza, afinal ela sempre se resguardou no que aparenta ser jamais no que realmente é.

            A nossa doirada oligarquia que de acordo com a própria convicção age segundo o talante divino mesmo que o mais corrompido sempre ditou a coreografia que iria compor a próxima peça. Essa eles iriam representar da maneira mais áurea em seu Olimpo pessoal conhecido como Versalhes, enquanto replicamos da nossa forma torpe uma versão tétrica e deprimente a dança cuja música que lhe rege sequer depreendemos, mas mesmo assim forçadamente obedecemos a tal variante nos comportando como o ventríloquo de uma corte mesquinha, todavia como a maioria de nós se constitui de pobres camponeses iletrados como poderíamos entender do que se trata os fios pelos quais eles nos subjugam do céu atuando como os deuses que soam para nós. Somos um povo oprimido e ignaro, portanto sem a devida educação para perceber a afronta que nos acomete, ela se alongou durante tantos séculos que assassinou os meus avós que sucumbiram pela fome e os meus pais que padeceram pela tuberculose que não havia meios pecuniários para sarar, por conseguinte, estou determinado a escolher a morte que me agrada e eu desejo morrer lutando para que os meus filhos consigam, enfim viver.

            Certamente gostaria de desfrutar mais um pouco da companhia da minha prole, entretanto já me foi arrancado qualquer apreço pela vida algo que transforma qualquer homem no hostil monstro que dizem que os revolucionários são, ademais a miséria nos torna análogos, porém também une fazendo com que estranhos se adorem como irmãos e batalhem fielmente um pelo outro.

            Agora todos somos apenas um Jacques e uma Jacqueline em homenagem a antiga revolta camponesa, porque os nobres costumavam nos chamar desdenhosamente por tais simples nomes campônios como se fôssemos todos idênticos e atualmente por ironia do destino nos sentimos semelhantes e usaremos de tal unidade para destronar o rei maldito que nos assola.

Eu sei que quando a verdadeira moralidade prevalecer perante os falsos valores que se protegem em dogmas teóricos que ironicamente são quase que apenas utilizados por aqueles que os mesmos condenam, então tudo irá se consertar e o fingimento irá cair para o reinado da naturalidade, portanto nem mesmo um rosto esbranquiçado pelo pó de arroz sobrará nestas avenidas tão belas e, no momento, em que os rostos obscurecidos pelo sol forte e calejados pelo labor que os mantêm frequentarem a zona onde os meus pés pisam finalmente a face delicada de Paris conhecerá o corpo bruto que a sustenta.

Sorriu perante tal ideia miraculosa, todavia o desfaço para escutar compenetrado a sacra pergunta de outro Jacques que me fita com uma fraterna veneração.

— Tu sabes como construir, querido Jacques? — velozmente concordo, afinal já trabalhei com toda espécie de trabalho braçal incluindo a construção e, em seguida, o meu amigo de guerra complementa ridente, apesar da firmeza da sua voz comprovar o seu incorruptível brio. — Ótimo, porque agora te ensinarei como destruir e o teu primeiro desafio será desmantelar a estimada Bastilha.

Quando termino de escutar a sua sentença quase consigo ouvir o despencar das grandes pedras da Bastilha que incitam uma insólita música que requere uma nova dança da vida que nós próprios pretendemos coreografar. Finalmente, poderemos eleger qual música ambicionamos dançar e qual será a cantiga que embalará o sono das nossas crianças. Portanto se para tal todos tiverem que presenciar o estrondo do colapso da Bastilha, creio que se trata de um preço irrisório.

Link para conferir Ópera de Gelo, o meu novo romance histórico.

Comentários

  1. Envolvente, uma narrativa objetiva, mas nem por isso simples

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    1. Pessoalmente, considero a Revolução Francesa um dos momentos mais complexos e apaixonantes de toda a história da humanidade

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  2. Impressionante como em poucas linhas, tu consegues expressar toda a diversidade histórica e emocional da Revolução Francesa, parabéns

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    1. Obrigado, gostaria precisamente de fazer um retrato da esperança revolucionária

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  3. Não é difícil de perceber o quanto é especialista do assunto. Te parabenizo pela dedicação em trazer com belas palavras o passado para nós

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  4. Espetacular, quanta singeleza em uma questão tão complexa!

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  5. Parabéns, querida muito belo

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  6. Envolvente, tudo descrito de uma forma tão lírica que nem se apercebe que está recebendo uma bela aula de história

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    1. Grata, acredito fortemente que o romance histórico tenha esse caráter didático

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  7. Ótimo, querida. Uma história muito bonita

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  8. Incrível, uma história grandiloquente e singela ao mesmo tempo

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  9. Não conhecia da história dos Jacques, gostei de conhecer

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