O sabor do luto - Conto

 O sabor do luto - Conto


                      Sou plenamente afeiçoado a pacata existência que aprecio algures no ensolarado Alentejo, isto é, em alguma modesta vila genérica onde as casas são revestidas de uma coloração nívea como se estivessem estagnadas em uma época nevada, ao passo que os telhados são avermelhados e cintilam como labaredas no entardecer, embora o que mais me fascine sejam as muralhas pétreas que circundam tudo para nos resguardar como se fôssemos uma pérola conservada em uma concha. Tendo em consideração, que cá, encravados em uma colina, podemos realmente contemplar a humanidade se estender no longínquo horizonte como uma verdejante tapeçaria repleta de variegados retalhos os quais assumimos uma única amostra minúscula, contudo o bastante para que prosperemos como pastores em conjunto com o nosso adorável rebanho de ovelhas. Além disso, quando não estou auxiliando a minha família em alguma incumbência laboral, logo parto junto com a Joana, minha irmã mais nova, a fim de explorar as redondezas silvestres ou mesmo nos aventurar no povoado que normalmente se caracterizou como uma extensão do próprio lar. Outrossim, repousamos em frente a acalentadora lareira, após cumprir com o sacro dever de comparecer na missa da igreja principal onde a sociedade local concentra toda a sua vivacidade no domingo, por conseguinte, conferindo a casa de Deus um autêntico caráter popular.

            Não obstante, todos os afáveis pormenores supramencionados, confesso que aqui esporadicamente poderia até ser monótono, porque comparado com a afastada capital alvoroçada estamos quase a ermo entre tantas íngremes subidas e descidas, entretanto venturosamente fomos dadivados com a benção de desfrutar do alimento o que concede deleitamento ao cotidiano. Sendo assim, na realidade, uma arte milenar em que nos versamos. Considerando, que é meritório tanto aquele que engrandece o manjar divino sem que o corrompa no refinamento quanto aquele que saboreia respeitosamente o resultado, afinal tudo se trata de venerar a comida transformando uma necessidade mundana em um prazer casto.

            Consequentemente, a culinária está comumente permeando todas as minhas memórias familiares, desta maneira sendo o fio que as Moiras manuseiam. Diante disso, é lógico que a nossa singela mesa posta simboliza em nossa afetuosa morada o que o Sol representa para o heliocentrismo de Galileu Galilei, ou seja, o amoroso âmago em que tudo rodopia no entorno como um vórtice de onde as exacerbadas gargalhadas e efusivos colóquios jamais se desprendem, da mesma maneira, é como a personificação da tácita hierarquia doméstica.

Porque, Santiago, o meu pai, logo se acomoda na rangente cadeira de vime rente ao limiar da porta para que consiga estreitar os esverdeados olhos estrábicos com o intuito de resmonear esbaforido sobre um cordeiro travesso que saltita demasiadamente perto da cerca para que, em seguida, ele repouse o semblante imberbe nas próprias mãos em um dormitar excêntrico que enfatiza a sua constituição tacanha e franzina que faz com que ele quase desvaneça na larga camisa de cânhamo que traja para combinar com as loiras, quase grisalhas, madeixas desgrenhadas que aparentam ser palhas secas que soltam do seu inseparável chapéu.

Enquanto, Matilde, minha mãe, reserva para si o assento contíguo a fornalha, malgrado apenas venha a ocupá-lo, após todo o repasto estar devidamente preparado, pois dantes está empenhada em toda espécie de místicas incumbências em que depreendo somente a deliciosa consequência, além das sequelas que a sua devotada ocupação lhe imprime, já que em virtude de ela estar de maneira recorrente agachada para incitar as brasas ou para apaziguar o fogacho, logo lhe acresce uma postura gibosa ainda mais evidente devido a sua alta estatura, bem como uma fronte rubra quase encarnada nas adiposas bochechas e um corpo perenemente ressumado, conquanto esteja sempre com as mangas do vestido remendado de linho arregaçadas. No entanto, apesar de tudo, ela é pulcra graças aos seus longos cabelos castanhos, bem como a vista da mesma cor terrosa que a remetem a um belo tronco de carvalho algo que, aliás, condiz com os profundos sulcos do seu rosto angulado.

Ao passo que eu e a Joana ficamos com as laterais meramente, porque tais lugares ainda eram remanescentes empregando, por conseguinte, como único critério de desempate entre ambas as opções à disposição o ínfimo fato de que o encosto da direita está ligeiramente chamuscado, por essa razão, ele está suscetível a enredar as douradas marrafas de Joana entre as ásperas lascas de madeira. Ainda que a minha mãe se desvele para que todas as mechas da Joana estejam contidas em um véu cerúleo com adornos áureos como uma noite estrelada, já que esse suntuoso adereço é detentor de uma notável estima materna. Tendo em vista, que a despeito de sermos fisicamente similares ao nosso pai herdando a pele lívida, o cabelo loiro e os miúdos olhos verdes que pretendemos consertar ladeando a face rechonchuda para atenuar o caráter vesgo, Matilde se esforça com afinco para que não leguemos igualmente o desleixo paterno, por causa disso, estamos permanentemente asseados em nossas imaculadas indumentárias de lã e eu até disponho de quatro boinas de couro que reparto entre uso anfêmero e especial. Todavia, também faz com que a mamãe se enfureça, quando rasgamos o tecido flanando entre arbustos espinhosos ou nos enxovalhamos ao resvalar em alguma poça lamacenta, portanto posteriormente ela se encarrega de praguejar e ralhar, enquanto cerze manejando a agulha como uma espada ou enxuga tão violentamente a veste em questão que parece estar torcendo o pescoço de uma sereia.

            Outrossim, concomitantemente a gastronomia serve como uma apurada bússola pela qual eu me guio através desta prolixa realidade que a minha percepção infantil não assimila por inteiro. Visto que norteio a nossa abundância ou penúria por meio da refeição que prorrompe em meu prato, malgrado o instigante aroma perfumado do leitão assado seja um fervoroso prenúncio de fartura, enquanto a miúde uma profusão de vegetais murchos procedem a incidência de um massacre fomentado por uma vil matilha. Ademais, por meio da variação sazonal de cardápio, logo infiro em qual estação estamos, pois se a abastança de frutas e flores pertencem ao séquito que segue Perséfone, logo creio que o cortejo de Despina se restrinja a algumas sopas insípidas. Por fim, utilizando de um pouco da astúcia que Édipo destinou ao enigma da esfinge, consigo também decifrar qual é a exata data comemorativa que celebramos, porquanto há um abismo entre uma ceia natalina, uma Semana Santa abarrotada de vida marinha e um mero aniversário onde o bacalhau seja servido junto a um punhado de ovos que são transfigurados em uma apetitosa sobremesa.

            No entanto, ainda na puerícia, eu descubro que a culinária jamais foi o decoroso herói da minha narrativa como outrora ponderei. Mas, pelo contrário, o pérfido antagonista que arruína a minha tenra existência, quando assassina a minha irmã usurpando consequentemente a minha alma também, porque o Dinis sem a Joana é apenas um miserável andarilho que perambula pelo submundo perseguindo o rio Lete para encontrar no entorpecimento da ignorância qualquer espécie de consolo.

            Não obstante, ironicamente todo o meu infortúnio ocorre em um dia tão despretensioso como de praxe, isto é, estava ensolarado, embora a assídua brisa torne o clima tépido, talvez se estivesse mais calor a Joana não me apoquentasse para passearmos no bosque, contudo a atmosfera aprazível aliada a sua crescente fome matutina, apesar do recente desjejum, logo faz com que ela se revele impressionantemente persuasiva. Portanto, partimos para andejar entre árvores frutíferas onde mordiscamos conforme algo atrativo desponta em meio a vastidão frondejante que fitamos. Entretanto, após lograrmos de diversas macieiras, entrevejo um insólito ramo provavelmente extraviado pelo responsável pelas pegadas lodosas ainda distinguíveis e, em seguida, sou hábil para discernir alguns pomos cintilantes como se o próprio Midas tivesse encostado em uma bolota. Então, compelido pela florescente curiosidade de desvendar qual seria o sabor do ouro, logo o provo sendo agraciado com um gosto tão azedo que reprimo um esgar, porque ulteriormente forçando um sorriso já aconselho que a Joana cujo olhar expectante reluz também o experimente, já que gostaria de troçar dela, após ela ter sido tão irritante mais cedo. Diante disso, ela afobada já engole dois exemplares desse fruto ignoto fazendo com que eu já ria descomedidamente até que percebo a maneira doentia com que ela enrubesce conforme a respiração se faz mais arquejante, porém mesmo assim a minha última risada arranha grotescamente na garganta antes que eu recupere a compostura para intentar espavorido arrancar o que ela engasgou, conquanto ela prontamente desfaleça. Aliás, até alcançar a nossa moradia, diligencio-me para tratá-la como se estivesse desmaiada, malgrado eu me aperceba, quando os espasmos cessam.

            O médico da cidade assegura que foi uma reação alérgica, malgrado isso seja um completo disparate, porque eu próprio ingeri o mesmo que ela e estou tão sadio que aparenta ser até um martírio o que significa que a comida que ela reverenciou sequer hesitou em trucidá-la, ou melhor, em nos trucidar. Afinal, se fomos algo mais do que estranhos já não me recordo. Também, não evoco nada similar a contento, quando eu me alimento, aliás, somente o necessário para que duas tragédias não coexistam. Por esse motivo, estou tão esquelético, contudo eu não consigo suprimir o asco que me avassala frente a qualquer refeição que tento consumir, afinal tudo agora parece ser insuportavelmente acrimonioso. Considerando que a mesma terra que produz comida e vida para a humanidade, também conserva o finado corpo da minha irmã.

Link para conferir Ópera de Gelo, o meu novo romance histórico.



Comentários

  1. Mesmo o título já antevendo o desfecho, confesso que fiquei estarrecido! Enternecedor é chocante um belo conto

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  2. Protagonista encantador e comovento, adoro os teus personagens infantis como o Dinis e o Lorenzo

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  3. Parabéns, escritora Victoria

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  4. Mais um texto primoroso, parabéns!

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  5. Top, sempre impressionante!

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