Assis - Todo sol encontra o entardecer

 Assis - Todo sol encontra o entardecer

        Tudo é passível de transformação: eis a máxima em que rege o livre-arbítrio. Ela é inspiradora, entretanto por si só corruptível, porque a mais perversa ideia concebida pode ser reconduzida a uma boa finalidade da mesma maneira que o mais sublime intento pode ser desvirtuado pelo volúvel equívoco mundano, por conseguinte, somos as Moiras que fiamos o próprio destino o que significa que cada triunfo ou revés é genuinamente pessoal algo que São Francisco consternado se apercebe ao regressar a Assis e descobrir que seus caros irmãos não estavam fazendo o melhor uso da inerente liberdade.

            Porque uma balbúrdia reina no âmbito fraterno devido ao desleixo com os sacros preceitos franciscanos, por isso alguns cedem a uma existência erradia e desprezam o celibato, enquanto outros ensejam erguer suntuosas construções em nome do Deus que Francisco compreendia como humilde. Ademais, a intransigente Regra deixa de ser absolutamente seguida o que fomenta o estudo erudito e súplica por alguma regalia papal, além disso, concomitantemente a completa liberdade de expressão faz com que centelhas prorrompam e na ausência do apaziguador Francisco se transformem em labaredas nas ardorosas discussões, desta maneira, comprometendo a célebre obediência franciscana já quase incinerada.

            São Francisco teve, pelo menos, um ataque de cólera frente ao deplorável degenerar da causa pela qual abdicou de tudo quanto terreno para espelhar o celeste sendo esse a hostil reação em Bolonha onde o irmão João fundou um colégio e Francisco expulsa a todos inclusive os enfermos.

Contudo, ele cede à intervenção papal que culmina em discrepantes mudanças da qual se salienta a nomeação de um governador indicado pelo papa e o abrandar do poderio de Francisco que se restringe a líder espiritual.

Logo, São Francisco se desvela para elaborar outra Regra ainda mais incontestável e simples, entretanto não se mostra uma solução plausível, pois o âmago permanece inalterado, sendo assim, acompanhado de outros o irmão Elias roga para que se atenue o rigor presente na Regra, todavia retumba a sagrada voz de Cristo que almeja a preservação da pureza do Evangelho e apenas para quem lhe acatasse serviria a Ordem.

Não obstante, a nova Regra é desfigurada pelo talante papal que dilacera as citações bíblicas e passagens líricas para substituir por uma linguagem legalmente denotativa, enquanto desautoriza a desobediência frente aos superiores indignos, o cuidado para os leprosos que abrange a concepção franciscana de obrigações para o vivenciar da pobreza, não persiste na ênfase quanto ao labor braçal e consente a leitura de qualquer livro que em tal altura era um opulento luxo.

Essas transformações contrariam o original espírito franciscano, no entanto, frente a pressão eclesiástica e interna foram necessárias. Afinal, a existência de uma metamorfose conservou a unidade de um grupo cada vez maior e mais diverso que estava se fragmentando, portanto, o deformar do mosaico foi a única forma de impedir que ele ruísse por inteiro. Escancarando o conflito entre a hierarquia espiritual e institucional.

Mesmo assim, Francisco que se percebia como um mensageiro divino sofria por contradizer a vontade de Cristo o qual até o papa é subordinado, porém, como apenas ele o escutava consequentemente a sua credibilidade é frágil. Finalmente, Francisco se diligencia para cumprir com a obediência que deve ao papa o que lhe foi muito pesaroso tanto que vários biógrafos asseveram que ele jamais esteve tão perto de renunciar a toda a sua obra, se bem que ao se resignar a entregar os imprevisíveis frutos ao Deus que venera, ele conquista a paz em seu tumultuado âmago.

Os seus derradeiros anos foram de uma acentuada tranquilidade, enquanto cultuava o amor a todas as criaturas, pregava e meditava, ou seja, persistia em sua costumeira rotina. Nesse entrementes ele enceta a tradição dos presépios, quando no Natal recria o nascimento do Cristo em uma gruta com pastores e animais.

 Mas, de sobremaneira ocorre uma insólita aparição durante uma meditação no dia da Festa da Exaltação da Santa Cruz, quando impressionado Francisco se apercebe do acercar de um homem de seis asas pregado a cruz algo que lhe suscita uma descomunal alegria conforme fita a figura, embora a mesma ostentasse contornos soturnos, entretanto ainda no transe de contemplação ele é consumido por uma dor excruciante ao sentir as chagas brotando em sua pele como ervas daninhas que ninguém plantou, logo constatando que elas se acomodam precisamente onde estavam em Cristo como se ele tivesse soprado o dente-de-leão que impregna São Francisco, talvez essa seja a razão dele se rejubilar com os ferimentos, conquanto lhe tragam um indizível embaraço.

Sempre se empenhou para que o seu martírio fosse um dilema pessoal, portanto se cobre de faixas, contudo elas não podem amenizar os sangramentos e intenso sofrimento que, por vezes, compromete o seu movimento, por isso ora ele é carregado pelos seus irmãos, ora recorre ao burro em caráter excepcional.

Além disso, ele também sofre por incessantes dores de cabeça e uma branda cegueira, porque nenhum paliativo médico surte efeito, portanto Clara se dispõe para acompanhá-lo e sobre o seu cuidado compõe o Cântico das Criaturas.

Frente a voraz deterioração, ele retorna à Porciúncula para perecer entre os irmãos e na Ordem para quem dedicou toda a vida. Ele premedita tudo para o próprio sepultamento em que lê as passagens prediletas do Evangelho perante amigos, irmãos e outras personalidades antes de sucumbir e diligenciar para os pássaros no telhado a incumbência de entreter os convidados, então cantam para o seu querido protetor. Eles Jamais entonariam algo tão belo de novo.

Mesmo que não carecesse da aprovação clerical, ele a recebe dois anos depois da sua morte quando o papa o canoniza e posteriormente uma nova basílica em Assis é erigida em seu nome para personificar o que é de conhecimento popular, ou seja, Assis e Francisco e Francisco e Assis sempre serão sinônimos.

Por fim, findo com o cumprimento do santo de Assis que inspirou toda a humanidade com a sua sacra existência.

Paz e bem.

Link para conferir Ópera de Gelo, o meu novo romance histórico.

Comentários

  1. Victoria como é bom ver o teu amor pela literatura e ser tão talentosa... SUCESSO SEMPRE!!!😘😘😘😘😘

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    1. Agradeço e estou muito feliz por ser capaz de transmitir a minha maior paixão

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  2. Emocionante o final da vida desse santo que admiro tanto…

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  3. Linda a história desse santo e emocionante o final de sua vida! Parabéns Vitória! Admiro muito teu trabalho.

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  4. Parabéns querida, muito lindo, adoro São Francisco!

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  5. Comovente e inspirador o final da sua vida como foi toda ela

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  6. Ver o lado humano de São Francisco me emociona

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