A árdua realidade - Conto

 A árdua realidade - Conto

     

                Deitada sobre almofadas no terraço contemplo Atenas que se estende pelo horizonte. A minha terna Atenas que é banhada pela imensidão fortemente azul deste mar Egeu de onde partindo do porto de Pireu podemos chegar a qualquer lugar do mundo, somos o coração da humanidade que bombeia cultura até para as extremidades mais remotas. Não há labirinto mais encantador do que as ruelas brancas e azuis que se emaranham como uma grande tapeçaria para confeccionar plaka e especialmente agora quando Perséfone emerge do Submundo para nos conceder a honra do seu toque primaveril que faz tudo renascer de novo, considero plaka ainda mais bela ao ser adornada pelos delicados contornos floridos que oferecem vitalidade para a vida ateniense por si só extasiante. Porém para vislumbrar a coroa de Atenas deve-se subir o curioso olhar até a Acrópole que se soergueu do solo para que o estonteante Partenon fosse devidamente apreciado. Ele é magnificamente pomposo e a prova acachapante de que divergentemente dos nossos lacônicos vizinhos sangrentos vamos além do mármore e daquilo que a visão infere. Somos a única arte que merece ser contemplada, pois a arte desprovida do conhecimento é nada mais do que um belo receptáculo oco, por isso é necessário para compreender Atenas que se tenha a plena consciência de que sobre Atenas caminha Péricles a quem devemos a democracia, Sócrates a quem devemos a filosofia e Sófocles e Aristófanes para quem devemos o teatro, já que somente desta maneira depreenderemos que Atenas não é apenas o lar da democracia, filosofia e teatro, entretanto precisamente o lar de todo o Ocidente.

            Algo que o Parthenon exemplifica pois ele é além de um grandioso monumento também o símbolo dos novos tempos que exalam progresso. É a personificação da nossa alma pensante que adora questionar, recitar e atuar e é exatamente nestas áreas que se encontram o nosso maior tesouro. Um que nenhuma guerra enterrará, um que nenhum espartano poderá surrupiar, aquele que existirá mesmo quando perecermos e Atenas silenciar, pois apesar de tudo ainda haverá poesias, peças teatrais e livros descrevendo o outrora em que Atenas era fervilhante e encantadora até para os estrangeiros mais céticos e antipáticos que se obrigavam a curvar-se frente a tamanha grandeza visível e invisível, já que Atenas é o berço do mundo, o começo de tudo. Tendo isso em vista, é excruciante para mim ponderar que talvez Atenas possa não ser adequada como minha morada, pois a cidade Atenas que deriva da esplendorosa deusa Atena, na realidade é muito hostil com artistas femininas. Uma pungente realidade que demorei a arrostar, pois almejo apresentar as minhas poesias no ínclito teatro de Dionísio, onde cresci. Desejo que a minha arte floresça onde germinei, ambiciono continuar na querida terra que se configura como a minha vida, porque o meu mundo se delimita pelas muralhas que circundam Atenas.

            Mas como perseverar em uma batalha que todos dizem ser fadada ao fracasso? A própria Aspásia, uma valente guerreira pelos direitos das mulheres, não me ilude sempre realçando os próprios dilemas como mulher e estrangeira que, embora capture a admiração do sábio Sócrates e do eloquente Péricles é inábil para transpor o enraizado preconceito dos néscios homens ordinários. Pois na verdade é mais fácil convencer um extraordinário filósofo e um sagaz estrategista do valor do seu intelecto do que persuadir um homem comum a enxergar além do gênero.

            Sou abruptamente seduzida pelo desânimo e como não há razão para resistir aos encantos do sono que se esgueiram pela minha mente ociosa, embalada pela brisa, logo caio nos braços de Morfeu. Acordo sobressaltada em um despertar violento toda molhada de suor e com o peito doendo, tanto que vergo para a frente em desespero. Até penso em gritar por auxílio, mas o que fariam? Iriam me curar? Por fim, decido aguentar a tortura sozinha, afinal é só mais um ataque já vai passar, mas os segundos decorrem e nada da dor atenuar, porém pelo contrário, sinto o esvair das forças do meu corpo. As outras crises da minha doença tiverem uma duração menor ou será que é a minha angústia que não deixa o tempo passar? Começo a tossir e o sangue mancha as minhas mãos trêmulas fazendo com que se materialize o desprezo que o meu corpo nutre por mim, então enfim compreendo que resta-me pouco tempo de vida, na verdade quase enxergo esta sentença escrita entre os filetes de sangue que escorrem pelas minhas alvas mãos.    

Por isso apesar do desgosto preciso me mudar de Atenas, já que a mesma não está disposta a mudar por mim. Portanto resolvo me utilizar do fundo pecuniário que a minha família iria gastar em mais uma tentativa frustrada de tratamento no templo de Asclépio, para zarpar para a ilha de Lesbos, onde sei que serei inspirada por Safo e finalmente respeitada como poetisa. Pois, está nítido que nem os deuses, nem a minha amada cidade e muito menos o meu próprio corpo enseja colaborar com o meu sonho de deixar uma marca eterna na humanidade em que tão parco tempo me deixaram desfrutar.

Link para conferir Ópera de Gelo, o meu novo romance histórico.

Comentários

  1. Me transportei para a Grécia antiga.

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  2. Impressionante! Fez personalidades tão antigas parecem vivas de novo

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  3. Tão apaixonante a descrição

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  4. Envolvente e belo, mas o final arranca lágrimas

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  5. Coitada, em poucas linhas já me condoi

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  6. Uma sensibilidade profunda e contagiante capaz de interessar os mais displicentes e inabeis leitores.

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    1. Estou muito realizada por ser capaz de enternecer por meio das minhas amadas palavras!

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  7. Um texto magistral e muito inspirador.

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