Quando as ondas do passado colidem com o presente - Conto

 Quando as ondas do passado colidem com o presente - Conto

            Hoje está um dia ensolarado em que o fulgor do nosso cintilante astro faz com que aparente que navego entre safiras, algo que não transcende uma mera ilusão, porque o Quintal dos Pescadores de Itaipu aparentemente não conserva nem mesmo os vulgares peixes, portanto nem devaneio sobre pedras preciosas. Certamente, posso estar sendo ingrato pelo sustento que o mar me fornece, entretanto, na realidade, sou muito afeiçoado a imensidão azul que cotidianamente me embala. Adoro o céu que se emaranhou em âncoras para afundar até, onde é palpável para a humanidade que se banha em sua celeste vastidão, ou seja, um encantador refúgio para lazer, mas austero local de trabalho.

Como, logo constato consternado, no entanto, não há mudança que esteja ao meu alcance, porque derivo de uma longeva linhagem de pescadores o que significa que tudo que compreendo e domino se restringe a pesca, na verdade, desde que me lembro como indivíduo estou oscilando no alto-mar, ele que sempre foi o berço sobre o qual repousei, portanto não posso agora me enraizar permanentemente a terra firme, embora ela seja mais viável e quiçá lucrativa, afinal sou tão alheio a sobrevoar o céu quanto a percorrer o solo. Além disso, creio que a minha composição foi moldada através das gerações para ser excelente para a vida híbrida que encarno, pois sou como um sapo, ou seja, por mais que a minha vida não esteja delimitada pelas ondas que recuam e avançam, estou intrinsecamente relacionado a água e não sobrevivo se privado do meu hábitat natural.

Sou uma criatura mirrada erroneamente tida como frágil, quando tudo se trata de uma evolução para caber dentro da pequena embarcação pesqueira, ademais, apesar do físico franzino, tenho fortes mãos calejadas perfeitas para manejar todos os apetrechos da pescaria e também espessas madeixas que são oleosas e negras remetendo ao petróleo, algo bastante útil, porque assim os meus cabelos nunca são um empecilho, contudo estão imunes a qualquer ventania ou maresia que devam enfrentar. Por último, mas não menos relevante, tenho uma pele bronzeada, típica dos meus conterrâneos do litoral, que faz com que eu me exponha diariamente ao sol escaldante sem ressecar até o definhamento.

Enquanto, o meu companheiro de labor é uma figura muito divergente, talvez porque o mar não se apresentou para si como o misericordioso destino, porém como a última esperança de sobrevivência o que faz com que ele nutra um ressentimento que jamais irá externar. Ele é virtuoso demais para confessar a vil ingratidão.

Mesmo assim, aprecio a companhia de Cauã. Ele que é um afável amigo que me deparei ao acaso, enquanto retornava, após uma exaustiva pesca que se delongou noite adentro. Eu o encontrei caçando algum emprego ao deambular de estabelecimento a estabelecimento, por vezes, recorrendo, até mesmo, as moradias que avistava entreabertas e mesmo que ostentasse um aspecto robusto de largas espáduas, soube de imediato que padecia da pérfida fome, em virtude, daquele olhar ensandecido e inquieto de quem responde de sobremaneira aos instintos da carne. Pois, em uma vida tão cíclica quanto a minha, eu próprio já defrontei a penúria tendo que abdicar até do alimento, quando os cardumes preferem a Copacabana. Portanto, quando arrostei aquele forte homem de traços indígenas que lacrimejava frente a cada negativa, logo me comovo e o ofereço a oportunidade de trabalhar junto comigo, apesar do meu trabalho ser tão pouco rentável que mal supri a minha própria necessidade, além disso tenho um barco pesqueiro tão pequeno que me contorço para adentrar. No entanto, como eu já previa, embora eu tenha salientado todas as adversidades inerentes ao encargo, ele alegremente aceitou e desde, então somos inseparáveis o que ainda não é garantia de uma convivência harmônica.

Somos muito discrepantes, algo nitidamente fruto da criação que recaiu sobre cada um de nós, porque o Cauã cresceu em uma verdadeira comunidade, onde todos se preocupam com todos devido a laços culturais e religiosos que lhe enredam em uma bela tapeçaria que me foge da compreensão, enquanto eu sou solitário e interpreto tal solidão quase como uma herança familiar. A minha mãe partiu antes que eu sequer recordasse o seu rosto o que deduzo como desgosto pela vida nômada e distante do meu pai, algo bastante factível e preservo como fato na ausência de uma explicação de uma das partes envolvidas. Jamais fui valente para exigir um expresso posicionamento do meu pai e agora que ele já pereceu é tarde, se bem que imagino que nem vivo ele esclareceria.

Ele era um velho rabugento e soturno que me instruiu quase que inteiramente por gestos, já que, aparentemente retinha uma aversão pela retórica que nunca fez questão de explicar. Ele era sábio no que tangia a navegação e depreendia os peixes e os seus hábitos com uma despreza que não conseguia reservar aos humanos, tudo indicando que os conhecimentos que repassou não provinham de si, mas de uma estirpe desconhecida. Por isso, quase tudo que sei acerca dele e sobre mim é resultante de muita especulação.                                                                      

Eu me tornei competente no que faço e introspectivo como requere a incumbência, sendo assim, quando o meu pai sucumbiu em uma tarde qualquer por uma patologia que misteriosamente se esgueirava. Assumi confiantemente a sua posição e, sendo honesto, não precisei me readequar muito a nova rotina, todavia o Cauã que não é congênito ao isolamento sofre para se acostumar com o mesmo, ao passo que, o encaro com normalidade e até carinho, afinal para padecer nas chamas esbraseantes do inferno primordialmente deve ter desfrutado da brisa estival e eu não a conheço. Entretanto, ao Cauã lhe é afeita, já que, devido ao contexto cooperativo em que estava inserido na aldeia indígena de onde ele provém logicamente o mesmo é loquaz e sente saudade de colocar em prática o impressionante traquejo social que esbanja.  Ele é um orgulhoso integrante do povo tupi que adora todas as nuanças culturais de seu povo, bem como idolatra a terra que lhe pertence sendo capaz de declamar cada mito ou canção que lhe diga respeito, algo que especialmente me apavora, porque, enquanto ele possui um exuberante outrora para se vangloriar, tenho que divagar para preencher as lacunas do meu vago pretérito.

Tendo tudo isso em vista, agora elucidarei, algo que já é exequível de inferência, assim dizendo, ele está aqui contra o seu talante. O grande dilema que lhe amaldiçoa é o confronto cada vez mais acirrado entre o seu povo nativo e os avarentos garimpeiros que lhe massacram, porque ao extinguir os protetores da natureza, logo estarão aptos para extrair como quiserem todos os recursos naturais, então depois de vários assassinatos que incidiram em sua aldeia, ele foi persuadido pela mãe e o cacique a zarpar para longe, onde a segurança ainda é soberana, enquanto eles permanecem para defender o próprio território. Por isso, ele se compunge e manda todo lucro pecuniário que, na realidade, inexiste para a sua comunidade, apesar de ver como insuficiente o próprio sacrifício.

Outrossim, toda culpa que ele cultiva também o faz desassossegado o que é um estorvo para a pesca. Ele não consegue discernir o ócio da paciência e sempre tenta colocar o inerente caráter esforçado em ação mesmo, quando ela é dispensável. Por conseguinte, eu me extenuo de ter que realçar constantemente o mesmo, quando como agora, ele aborrecido me ralha se remexendo tanto que quase faz com que naufraguemos.

— Claramente, estamos em uma área desprovida de cardumes, então por qual razão não procuramos uma mais proveitosa? Estamos beirando a tarde e nada. 

Reviro os olhos e felizmente o mar trata de retrucar em meu nome, porque a rede que arremessei celeremente começa a se revirar em uma sutileza tão acentuada que só distingo pelo tremular anormal em meus dedos, portanto repasso para o Cauã puxar, já que, o mesmo é mais vigoroso, além disso é arrebatado por tamanho entusiasmo que nunca consegue aguardar pelo meu esmerado, porém langoroso empenho.

Eu o observo com indiferença, no entanto, estreito os olhos para o horizonte, quando uma densa tempestade se avulta com uma velocidade tão impressionante que receio pela nossa vida, afinal amar e temer são importantes na mesma medida, quando se trata do mar. Contudo, o Cauã se nega a retroceder, porque o que capturamos se agita cada vez mais a medida que o troar se faz audível e, também avistamos esbeltas colunas que se erguem e dissipam em um único piscar. Lastimavelmente, logo cedo, quando a tempestade, enfim nos abarca e qualquer altercação se transforma em supérflua.

O Cauã faz um derradeiro esforço e cambaleia, enquanto soerguemos um descorado náufrago que se agarra na borda e cospe água em nossos pés. Sou o primeiro a me precipitar para que ele adentre conosco na embarcação, no entanto, assim que encosto em sua pele fria, ele balbucia injúrias em uma língua incompreensível e quanto mais eu me empenho para elevá-lo mais ele tenta nos naufragar e até posso jurar que um redemoinho se forma em nosso entorno, enquanto ele parece atiçar o mar sibilando como uma serpente. Então, renunciando do meu intento compassivo para contemplar o meu instinto de sobrevivência, logo desfiro um pontapé em seu semblante fazendo com que ele submerja para o mar que se asserena com a oferenda, embora ainda esteja tumultuado.

Entreolho o Cauã que tremente tartamudeia qualquer sentença ininteligível, enquanto pondero sobre qual a razão para a estranha aparição envergando a vestimenta de um antigo colono incessantemente repetir, entre tantos vocábulos que desconheço, ‘’ Henriville ‘’, o nome que Niterói antigamente possuía para homenagear o rei francês, quando ainda estávamos submetidos ao domínio francês. No entanto, logo relevo o esdrúxulo fenômeno, quando uma imponente embarcação surge por entre a bruma.

Um autêntico milagre, porque devido as fortes correntezas que se colidem pelo temporal, não temos condição de zarpar desamparados para a costa, algo que o Cauã também se atenta, pois me ajuda a sinalizar para o navio que envereda em nossa direção. 

Entretanto sou invadido por uma sensação agourenta, quando entrevejo uma bandeira francesa tremulando ao alto como se fosse uma miragem. Pois, não pode ser coincidência que indaguem acerca da nomenclatura obsoleta de Niterói e, em seguida, prorrompa um navio francês, talvez buscando a sua colônia perdida, ou melhor, a vetusta França Antártica. Logo, depois vejo o Cauã franzir o cenho perante palavras longinquamente proferidas e antes dele me esclarecer, eu já afirmo de antemão.

— Eles conversam em tupi como os antigos tamoios aliados aos franceses.

Enxergo dessolado como a descrença se dispersa ao, enfim decifrar todos os acontecimentos, no entanto, para a minha admiração, ele não espelha a mesma expressão de conformismo frente a derrota, mas se revigora com uma certeza que me externa.

— Se uma tempestade pode conjurar almas do pretérito. Nós, criaturas marinhas, certamente também podemos e estou convicto de quem pode nos amparar.

Ergo o sobrolho, ao passo que, ele se apressa para arremessar a rede ao mar, logo se empenhando para novamente puxá-la, enquanto detalha o seu estratagema.

— Caso, eu não esteja equivocado, o maior responsável pelo triunfo português frente a essa coalização foi o lendário cacique Arariboia. Ele pertencia ao povo temiminó que rivalizava com o tamoio, apesar de compartirem centenas de semelhanças entre elas a antropofagia que é uma prática arcaica que requere um duradouro ritual, todavia esperemos que apenas o sangue tamoio derramado sobre a água de Niterói, onde ele batalhou seja o bastante para conquistar a sua proteção.

O Cauã segura a cabeça desacordada do náufrago francês e corta com o anzol o seu pescoço que jorra sangue, enquanto ele segreda algo em tupi, ao passo que, eu impotentemente fito o tenebroso panorama e consigo até distinguir os arcos que os tamoias erguem contra nós. Tomado de assombro, fecho os olhos antes de sermos violentamente arremessados, porém estamos vivos. Uso-me da visão que confirma o que penso, ou seja, estamos vivos e sadios na costa que nos resguarda junto aos destroços do nosso pequeno barco. A única prova acachapante da nossa aventura marítima, porque tanto a tempestade quanto as figuras históricas do outrora desaparecem dispersadas pelo caloroso sol. Eu não compreendo o que aconteceu, mesmo assim, abraço o Cauã em agradecimento, porque tenho plena consciência de que hoje sou eu que devo a vida a ele.

Link para conferir Ópera de Gelo, o meu novo romance histórico.

Comentários

  1. Eu não costumo gostar de histórias fantásticas, mas esta adorei

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  2. O doce Cauã é tão doce

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  3. Eu gostaria de ter o Cauã como amigo também

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  4. Como fã de fantasia fui fisgado pela estória

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  5. Exato, presente e passado são partes da mesma moeda

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  6. Lindo!
    Gostei muito da sua forma de escrever.

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