Partida para a guerra - Conto

 Partida para a guerra - Conto


Há um pequeno povoado, onde nada nunca acontece e todos os dias aparentam ser a repetição infindável do mesmo. Ele está cravejado em uma colina pedregosa que foi habitada, porque se achou alguns minérios aqui, entretanto não de alguma espécime cintilante e valiosa, como as safiras que me lembram as lágrimas de Deus, na verdade, penso que o exemplar mais ilustre que já achamos foi uma pedra turquesa, por isso, embora existamos devido a mineração esta jamais conseguiu alavancar o nosso vilarejo para algo mais do que um nome esquecido em um grande mapa. Eu até desconfiava que o governador não tinha consciência da nossa existência, então nem sequer devaneava sobre um reconhecimento vindo do cônsul, portanto fiquei devastada, quando após a proclamação de uma batalha na fronteira, ele aconselhou que perante o nosso frágil exército nacional confeccionado quase que inteiramente por vetustos reservistas e inexperientes imberbes, teríamos que recorrer a um alistamento forçado especialmente destinado aos homens emancipados da região. Assim, que eu me inteirei deste anúncio, senti um calafrio, apesar de conscientemente eu ainda não saber a razão, acho que a minha alma se atentou antes da minha mente para a localização exata do nosso lar. Queria enveredar para a escola a fim de conferir com os meus próprios olhos onde no mapa surrado e desbotado nos localizamos, se bem que não foi necessário, pois no caminho para a porta, encontrei o meu pai com uma face abatida consolando a minha mãe que se debulhava em lágrimas, enquanto fazia indagações que apenas o caprichoso futuro poderia esclarecer, embora o papai se ocupasse de respondê-las.

            Não houve escapatória para nós, tivemos que ceder o nosso pai para a vida beligerante mesmo que o mais perto que ele já tenha chegado de um autêntico armamento tenha sido segurar uma picareta. Por fim, já considerávamos uma dádiva ter nos sido poupado o meu irmão mais novo Santiago. Depois, tivemos que reorganizar toda a nossa vida: eu, Santiago e a minha mãe que entraja uma postura esdrúxula desde que a célebre desgraça recaiu sobre nós, pois me parece que ela está sempre introspectiva como se tivesse, enfim percebido escancaradamente a nossa condição de mortal insignificante cuja dor lancinante por mais expressiva que seja é incapaz de arrancar um ínfimo suspiro de pesar na humanidade. Ela não abdica dos seus deveres, mas, pelo contrário, agora ela se empenha ainda mais para cuidar do pequeno rebanho de ovelhas que temos. Apesar, de toda dor que a nossa mãe precisa suportar, ela permanece sendo a rocha sustentadora, onde toda a família se apoia, mas ainda é deplorável que ao assumir o posto de única provedora desta família, ela precisou abandonar a afável figura materna que sempre foi a bússola emocional pela qual nos guiamos. O resto de nós nem se atreve a mensurar o que significa a partida do papai para a guerra, por hora, fazemos do veloz encontro com ele na clareira a única data que recordamos, afinal na sua passagem, após o treino bélico na capital é a última vez que podemos afirmar categoricamente que iremos o ver vivo.

            Estou agora na afamada clareira em que existe sempre uma calorosa fogueira, onde caçadores se reúnem para descansar entre uma caçada ou outra. O meu pai costumava dizer que existe maior prazer em resfolgar com a ardência do fogo e com o aprazível sentimento de dever cumprido do que propriamente caçar nos bosques tépidos e lamacentos. Não posso opinar, pois careço de experiência, mas hoje não sinto prazer aqui contrariamente estou tomada por uma angústia que dificulta a respiração e no Santiago provoca uma perene inquietude que ele externa batendo o pé no solo, enquanto me importuna com dolorosas conjecturas sobre o porvir que me limito a cortar com impaciência, afinal não ganhamos nada, além de dor, com suposições sobre o futuro.

— Pensemos somente no agora, pois o depois não nos pertence.

            Ele revida enraivecido, enquanto a sua língua serpenteia expelindo veneno.

— Isso não significa que não obedeça a regras. O problema é que éramos versados nas antigas já obsoletas, por isso prevíamos se iria chover pela cor das nuvens ou pelo peso do ar, entretanto somos ignaros para as novas que servem para propósitos mesquinhos e sangrentos, ademais é volátil o bastante para se remodelar frente a raiva de um só homem, enquanto a natureza perpetra chuvas e secas sem se importar com perdas ou ganhos de ninguém. Sendo assim, admito que tenho saudade deste amável pragmatismo.

            Felizmente, o nosso pai surge sorridente colocando fim ao diálogo e, logo tudo o que importa é ele que tagarela animado sobre as pessoas que conheceu e os lugares que visitou me deixando desalentada, por isso permaneço calada quando o Santiago indaga receoso, após a sua partida ‘’ será que o iremos perder? ‘’, já que, embora pense em minha mente que já o perdemos, eu não acho que tristeza deva ser compartida. 

Link para conferir Ópera de Gelo, o meu novo romance histórico.


Comentários

  1. Quando se vivencia uma guerra em tempo real impossível não lacrimejar....

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  2. O final é de quebrar o coração…

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  3. a descrição da aldeia faz com que pareça que já a conheço incrível

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    1. Obrigada, muito alegre por ser capaz de transmitir esta pequena vila da minha mente

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  4. Conto curto que oferece ótima literatura, perfeito para a vida agitada do leitor de hoje

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    1. Muito feliz pelo comentário e já aviso que toda semana tem conteúdo novo

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  5. A guerra tem muitas faces e todas horríveis

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  6. O menino do conto é encantador

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  7. Quase sinto a angustia familiar

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  8. Linda história. Parabéns à talentosa escritora.

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  9. História envolvente, vontade de ler mais.

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